Quando a competição se dá em bases desiguais, além da necessidade de intervenção da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o Ministério Público e os órgãos de defesa da concorrência devem ser acionados para resgatar princípios constitucionais que parecem esquecidos.
De acordo com o superintendente de Abastecimento da ANP, Roberto Ardenghy, “já foram encaminhadas ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) cerca de 550 notas técnicas de denúncia” relacionadas a supostas ações de verticalização praticadas por distribuidoras. Mas pondera que “irregularidades nesse campo são difíceis de detectar”.
Diante do atual cenário do setor, em que a verticalização e a concentração ganham cada vez mais espaço no mercado, o advogado, professor e coordenador do Grupo de Estudos de Direito da Concorrência da Faculdade de Direito do Mackenzie, Vicente Bagnoli, é categórico ao afirmar que “este é um caso em que o direito da concorrência pode, e deve, atuar”.
Ao analisar a ação de distribuidoras, que usam de subterfúgios para controlar o mercado revendedor, ele recorre a Lei de Defesa da Concorrência. Bagnoli menciona o artigo 20, que relaciona as infrações à ordem econômica, como as ações que prejudicam a livre concorrência e a livre iniciativa, a dominação de mercado relevante de bens ou serviços; o aumento arbitrário dos lucros e o exercício de posição dominante, praticado de forma abusiva. O advogado também cita a Resolução nº 20 do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que aponta as condutas verticais mais comuns, como fixação de preços de revenda; acordos de exclusividade; recusa de negociação, quando o fornecedor de determinado bem ou serviço estabelece unilateralmente as condições em que se dispõe a negociá-lo e discriminação de preços, quando o produtor utiliza seu poder de mercado para fixar preços diferentes para o mesmo produto/serviço.
Para Bagnoli, “as práticas verticais geralmente pressupõem a existência de poder econômico no mercado relevante ‘de origem’, bem como efeito sobre parcela significativa do mercado ‘alvo’ das práticas, de forma a caracterizar a possibilidade de dano à concorrência”.

Futebol na ladeira
Ele diz que “no direito da concorrência não se tem uma regra per se; faz-se a análise caso a caso e se nessa análise for verificado que a conduta pode limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou se a livre iniciativa afetar a concorrência, aí, como dizem os americanos, ‘we got a case!’”.
No caso das Cais, ele concorda que se trata de um vácuo legal, pois a atividade não está regulamentada pela ANP. Segundo ele, trata-se de um cenário em que a competição se dá em desequilíbrio. “É o mesmo que jogar futebol numa ladeira. Por mais eficiente que seja o time que está embaixo, jamais conseguirá fazer o gol. O próprio Cade poderá manifestar-se acerca da questão, mas é a ANP que deverá regulamentá-la”.
Na sua visão, a livre concorrência e sua proteção não podem estar dissociadas dos “princípios que regulam a ordem constitucional econômica, tais como a valorização do trabalho humano, redução das desigualdades regionais e sociais, tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte e busca do pleno emprego”.
Ao referir-se aos postos-escola ele assinala tratar-se de mais um caso em que “as autoridades competentes tomam decisões sem avaliar o tema concorrencial e a sua repercussão sócio-jurídica-econômica”. Bagnoli comenta a Resolução nº 4 da ANP, de fevereiro último, que regulamenta o exercício dessa atividade e teria como principal finalidade a capacitação de mão-de-obra e a implantação de novas tecnologias. “Apesar de detalhista à primeira vista”, pondera, “ao analisá-la percebe-se sua generalidade, sem precisão em temas como a questão concorrencial”. E salienta: “ninguém tem dúvida de que aperfeiçoamento técnico e qualificação profissional são importantes, mas a questão é como conjugar esses temas com a realidade sócio-econômica”.
Ele cita os postos-escola de municípios com menos de 200 mil habitantes, como Garanhuns (PE), Macaé (RJ) e como Bayeux (PA), admitindo não ter dúvidas sobre seus efeitos nessas localidades: “o impacto sócio-econômico é tremendo, pois todos os princípios legais que pautam a nossa ordem econômica foram esquecidos. Devemos ter em mente que a empresa posto varejista exerce uma função social, pois arrecada tributos, gera postos de trabalho, desenvolve a região e reduz desigualdades sociais.

A luta de Davi e Golias, sem a divina providência
Desde 1994 grandes redes de hipermercados passaram a instalar e operar postos de serviços nos estacionamentos de suas lojas, utilizando-se dos créditos do ICMS pagos a maior – por meio da substituição tributária – sobre os combustíveis nos outros produtos vendidos nos estabelecimentos. Isso – ao lado do desrespeito às convenções da categoria de frentistas, quanto a piso e reajuste salarial e outros benefícios – permitia (e ainda permite) que comercializassem gasolina e álcool, especialmente, por preços inferiores à média do mercado da vizinhança, gerando quedas expressivas nas vendas dos postos tradicionais e conseqüente redução nos postos de trabalho oferecidos na região. Embora a engenharia tributária tenha sido extinta em diversos estados – como São Paulo, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, segundo fontes da ANP – , por conta de leis que obrigam a que os postos tenham inscrição estadual específica no cadastro de contribuintes do ICMS, a entrada dos supermercados no segmento de combustíveis tem de ser vista com cuidado, em virtude de impactos econômicos e sociais que pode gerar.
“Esse é um tema que merece muita atenção e o Cade deve ser provocado a respeito o quanto antes”, sugere o advogado. Conforme sua explicação, em se tratando de engenharia tributária e desrespeito às convenções trabalhistas, na aparência essa situação parece ótima para o consumidor, pois este estaria pagando menos pelo produto, mas isso é uma ilusão: “o preço real está sendo mascarado e, no longo prazo, o consumidor poderá pagar até mais caro ao se tornar refém dessa prática”. “Não estamos diante da situação em que o agente econômico mais eficiente conquista o consumidor, mas diante de um benefício cruzado, anticoncorrencial, ainda que eventualmente legal no campo fiscal, mas que pode causar sérios danos ao mercado concorrencial”.
Para ele, “o Cade é o órgão para pronunciar-se quanto aos efeitos concorrenciais dessa prática e, entendendo-a nefasta, recomendar à autoridade fiscal competente – no caso, os próprios governos estaduais e até mesmo a ANP –, que cessem tal prática, sob pena de prejuízos irreversíveis à concorrência e ao bem-estar econômico do consumidor”.
Neste sentido, ele resgata o artigo 170 da Constituição Federal, sobre a ordem econômica brasileira, que relaciona a defesa da concorrência e da propriedade privada com o desenvolvimento social, a redução das desigualdades regionais e sociais e o favorecimento das empresas de pequeno porte. No caso dos postos de supermercados, Bagnoli pondera que “aparentemente justifica-se a conduta em defesa do consumidor e da livre concorrência, mas se esquece de outros princípios assegurados constitucionalmente e que fundam a ordem econômica brasileira. No longo prazo, perderá também o consumidor e a concorrência”.
O especialista diz que não se pode esquecer que o mercado de combustíveis é imperfeito; nele atuam varejistas de pequeno, médio e grande porte, e distribuidores grandes e médios: “esse modelo exige um exercício intenso das autoridades regulatórias e de defesa da concorrência, pois tanto se pode estar diante de situações altamente competitivas, quanto se deparar com um quadro de abuso concorrencial e condutas prejudiciais, por meio de práticas irregulares que restringem ao máximo a competição”. (CCS)
O destino da Cais de São José dos Campos (SP) está nas mãos do Ministério Público Federal.
Talvez pressionada pelas manifestações de frentistas e revendedores, pela preservação de empregos e empresas,
diante das Cais de Camaçari (BA) e São José dos Campos (SP), realizadas nos primeiros meses do ano, em abril a BR Distribuidora chegou a anunciar sua decisão de suspender investimentos no projeto. Em meados de maio, porém, o mercado se surpreendeu ante a notícia de que essa suspensão era temporária, visto que está para ser editada uma resolução da ANP sobre ponto de abastecimento, que muito provavelmente também trará novidades sobre essas centrais. Quanto as 10 Cais já instaladas nos estados de São Paulo, Pernambuco, Bahia, Paraná, Minas Gerais, Goiás e Alagoas, as informações são de que deverão prosseguir com suas atividades.
É aguardar para ver o que traz a nova legislação da ANP.
Mas, enquanto isso, o Sincopetro vê motivos suficientes para questionar no Ministério Público Federal a Cais Vale do Paraíba (Cavap) instalada em São José dos Campos (SP), pela prática de verticalização e de um sem número de irregularidades existentes nos documentos da empresa. Em virtude disso, no início de junho a entidade enviou uma manifestação a Procuradoria da República de São José dos Campos, solicitando que esta instaure um inquérito civil público, para apurar irregularidades.
Ao ser convidada a prestar esclarecimentos, a Petrobras Distribuidora alegou que a Cavap não é uma instalação sua, por isso não há alvará de localização em nome da empresa. Segundo a companhia, aquela central é na verdade constituída pelo Grupo de Transportadoras e Empresas-Cavap, as quais são comodatárias do imóvel e dos bens situados no quilômetro 143 da Rodovia Presidente Dutra, de propriedade da BR. A distribuidora também informou ser fornecedora exclusiva de produtos combustíveis às integrantes daquele grupo, conforme contrato firmado junto a cada empresa membro.
Porém, em nenhum momento foi apresentado alvará de localização e funcionamento em nome das integrantes, enquanto que no auto de vistoria do Corpo de Bombeiros a BR Distribuidora aparece como proprietária e responsável pelo uso do estabelecimento.
Em paralelo, foi apresentada uma ficha cadastral de ponto de abastecimento consumidor, solicitando registro novo na ANP em nome do Grupo de Transportadoras e Empresas-Cavap, porém sem o respectivo registro junto àquele órgão.
Por outro lado, a licença de operação do órgão ambiental do estado (Cetesb) está em nome da Petrobras Distribuidora-Cais, tendo sido emitida para a atividade principal de Comércio Varejista de Combustíveis para Veículos Automotores, em total desacordo com sua finalidade real, o que mostra que o estabelecimento funciona hoje de forma totalmente irregular nesse aspecto.
Por serem diversas as empresas que fazem parte da Cais, conforme alegado pela BR, o documento do Sincopetro afirma ser nítido que se tratam de consumidoras finais, o que acarreta flagrante ato de verticalização, em descumprimento a Portaria nº 116/00 da ANP, que proíbe o distribuidor de combustíveis de exercer atividade de revenda varejista.
Em sua manifestação ao Ministério Público Federal sobre a Cavap, a entidade destaca que a BR Distribuidora “deixou clara a prática de verticalização do setor, bem como a ausência de licenças para o exercício de qualquer que seja a atividade desenvolvida naquele local, além de não apresentar qualquer alvará de localização e funcionamento”, solicitando que as devidas providências sejam tomadas pelo órgão. (CCS)