Liberação do caos

A perseguição desvairada de um ideal de livre concorrência acaba por embaçar a capacidade de discernimento das autoridades, ameaçando o setor de combustíveis, a própria concorrência e o consumidor.

Como afirmam as principais entidades re­presentantes de diferentes elos da cadeia de combustíveis, não se trata de ser contra a livre concorrência, mas sim de considerar que mes­mo para a liberdade devem haver regras e, da­das as irregularidades presentes no mercado, sua ampliação neste momento só serviria para agravar ainda mais esses desvios, em prejuízo do Estado, de empresas e empresários idôneos e, pior, dos consumidores.

Com o pretexto de que o aumento da com­petição levará à queda dos preços finais, o gover­no propõe a destruição do atual e eficiente sis­tema de produção, distribuição e abastecimento (que, apesar dos pesares, funciona) e aposta na competência do mercado como ente regulador. Parece ignorar, além das dimensões continentais do país e da existência de fraudes nesse setor, a complexa estrutura tributária que o envolve e, ainda, a acirrada concorrência já existente entre os mais de 40 mil postos aqui instalados (de acordo com dados de 2018, divulgados pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Bio­combustíveis, ANP).

Mas parece que não há muita disposição das autoridades em levar em consideração os argu­mentos de quem vive o dia-a-dia do setor de combustíveis.

Sincopetro, entre outras entidades, há anos pede medidas drásticas para acabar comas im­perfeições desse mercado. E, neste momento, te­mendo o caos, justamente por conta destas, entre outros motivos, se coloca contra as intenções do governo, de liberar a venda direta de etanol pelas usinas a empresas de revenda e a verticalização do comércio de combustíveis. Ainda mais se essas medidas não forem precedidas por criteriosa re­forma na estrutura de tributação, que, por exem­plo, substitua todos os impostos incidentes sobre os combustíveis (PIS/Pasep, Cofins e Cide, fede­rais, e ICMS, estadual) por um único, monofásico, com alíquota nacionalmente uniforme. E de nada adianta falar em monofasia tributária federal se o ICMS, cujas regras de arrecadação e alíquotas variam de estado para estado (entre 25 e 34%, na gasolina; 12 e 32%, no etanol, e 12 e 15%, no die­sel), também não for unificado nacionalmente, o que não será nada fácil ocorrer.

ESTRUTURA E CARGA TRIBUTÁRIA

É importante lembrar que a grande quanti­dade de impostos e a alta carga tributária sobre os produtos (que na gasolina, supera os 44%, no etanol, 26%, e no diesel, 23%, conforme o esta­do) impedem que a fiscalização seja eficiente e, também por esse motivo, fomentam a sonegação e toda sorte de fraudes, já que os montantes apu­rados com esses crimes são de grande vulto, e, portanto, muito atraentes, e as punições, raras.

Ademais, há as alíquotas de ICMS variáveis para as vendas interestaduais, outra brecha que facilita desvios e sonegação; o “sonegador con­tumaz”; a isenção de impostos no etanol anidro, que gera o “álcool molhado”, vendido como eta­nol hidratado, entre outras mutretas.

LIBERAÇÃO DO CAOS

Mas, voltando às intenções governamentais. No dia 11 de junho foi publicada a Resolução nº 12/2019 do Conselho Nacional de Política Energé­tica (CNPE) que, ao definir diretrizes para a promo­ção da livre concorrência no setor, acaba com a es­trutura de comercialização existente, por mesclar atribuições de diferentes agentes de comercializa­ção dos combustíveis: produtores, distribuidoras, TRRs, pontos de abastecimento (PAs) e postos.

A resolução determina que ANP e o Ministério da Economia priorizem a conclusão de estudos e a adoção de medidas para o incremento da livre con­corrência no setor, objetivando a queda nos pre­ços. Para a revenda, o ponto mais preocupante é o inciso III, do artigo 1º, destacado abaixo, que libera:

Comercialização, por produtor, de etanol combustível hidratado com revendedor vare­jista de combustíveis automotivos e TRR.

A revenda classifica essa medida como uma “aventura irresponsável”, caso as distorções existentes na comercialização, em particular a sonegação (estimada em R$ 2,7 bilhões por ano), não sejam corrigidas. “Ao tentar concorrer com quem sonega impostos e adultera e rouba produtos as empresas sérias só perdem ou, então, são atiradas no jogo, para não falir”, declara o presidente do Sincopetro, José Alberto (Zeca) Paiva Gouveia. “Não dá para fazer frente à concorrência desleal”, desabafa.

No caso do posto, basta não ter bandeira para poder comprar direto da usina. Certo? Sim, mas essa operação só será viável se esse fornecedor estiver nas proximida­des do estabelecimento. Nem todos os estados produ­zem etanol e, na ausência de estrutura de transporte como a de uma distribuidora, o custo da logística tenderá a aumentar quase 25%, como mostra estudo da Leggio Consultoria, divulgado na edição anterior. Mesmo com a permissão para que TRRs igualmente comprem direto de usinas e comercializem etanol (e também gasolina e diesel B) com postos e pontos de abastecimento, como ainda propõe a resolução.

VERTICALIZAÇÃO: PRIMEIROS PASSOS

Mas a venda direta e a liberdade para que TRRs comer­cializem todos os combustíveis são apenas os primeiros passos da verticalização, delineada claramente quando o CNPE faz recomendações quanto à tributação no setor.

A resolução determina que o prazo para a liberação da venda direta de usinas a revendedores (varejistas e re­talhistas) será de até 120 dias, contados a partir de publi­cação de lei que estabeleça a monofasia tributária federal sobre os combustíveis em geral. Entretanto, a viabilidade dessa lei sobre unificação de tributos deverá ser avaliada, em prazo de até 180 dias, pelo Ministério da Economia, ao qual o CNPE recomenda, ainda, buscar a “harmonização dos tributos” (leia-se alíquotas do ICMS) junto aos estados.

Impostos e contribuições federais (PIS/Cofins e Cide) não são os principais problemas hoje. Vale lembrar que desde que a Constituição de 1988 foi promulgada procu­ra-se acabar com a guerra fiscal entre estados, por con­ta das diferentes alíquotas de ICMS, e com a sonegação (quem se lembra da “indústria de liminares”?). Será que, agora, em 180 dias, o governo conseguirá tal proeza?

A resolução também incumbe o Ministério de Minas e Energia de articular-se com outros órgãos, visando “ao combate à sonegação e à adulteração de combustíveis, en­tre outras práticas que distorcem a concorrência”. Mas há anos o Sincopetro e outras entidades denunciam a prática de concorrência desleal, por meio dos preços predatórios visíveis nos postos e até mesmo no Levantamento de Pre­ços realizado e divulgado pela ANP. Os resultados dessas denúncias ficaram muito aquém do esperado, mesmo com todo empenho de órgãos e entidades, isoladamente ou em conjunto, em forças-tarefas.

Se hoje, o revendedor é obrigado a conviver com to­das essas ameaças a sua empresa, e mais contratos co­merciais leoninos, é possível vislumbrar o que acontecerá quando distribuidoras puderem operar diretamente seus postos: poderão achatar sua margem em um ponto, para acabar com a concorrência e ampliar vendas, e elevar em outros, para compensar o lucro perdido, sem nunca perder nada, de fato. “E o posto da bandeira, tendo de concorrer com seu fornecedor? E o independente?”, per­gunta o presidente do Sincopetro, “quem irá defendê-los nessa concorrência desequilibrada?”

QUALIDADE E CUSTOS

Ao referir-se à venda direta de etanol e à verticali­zação, ele ainda levanta a preocupação com a qualida­de dos produtos. “Os combustíveis que vendemos ao consumidor final são produto de misturas feitas pelas distribuidoras para atender às especificações ditadas pela ANP: diesel com biodiesel, gasolina com etanol e etanol com água. Com a verticalização, que se inicia pelo etanol, quem fará as misturas e quem fará o con­trole de qualidade? O revendedor?”

A questão mostra também sua apreensão com a elevação dos custos para a reven-da, e faz referência à recente Resolução nº 790 da ANP, ainda não regu­lamentada, que obriga os revendedores a contratar laboratórios credenciados pela agência, para realizar as análises dos combustíveis determinadas pelo novo Programa de Monitoramento da Qualidade dos Com­bustíveis (PMQC).

É possível imaginar que, com todas as imperfeições existentes hoje no mercado de combustíveis, a venda direta e a verticalização serão benéficas para o país?

É tempo de arrumar a casa, antes de tudo. A reava­liação, num segundo momento, dos modelos em pauta e se são, de fato, adequados ao mercado brasileiro e aos seus consumidores, precisa considerar os argumentos de quem lida, cotidianamente, com o comércio de combus­tíveis. Excluir os principais protagonistas desse mercado da discussão pode levar a irregularidades ainda maiores do que as que se vê hoje, em prejuízo do país, do consu­midor e de categorias empresariais especializadas.

Por Cristiane Collich Sampaio